Ouvir falar sobre contrainteligência, costumeiramente, é algo próprio de agências de inteligência, sejam elas voltadas para o assessoramento a nível político, estratégico, tático ou operacional.
No âmbito da Polícia Judiciária, embora haja núcleos voltados à matéria de inteligência, contrainteligência e operações de inteligência, não há uma cultura de segurança que permeie o dia a dia da atividade policial.
A contrainteligência em um dos seus principais segmentos, a segurança orgânica, não é conhecida extramuros das agências. Também, não é clareada a sua utilidade para a atividade de investigação e, neste ponto, temos uma situação que precisa ser modificada.
A contrainteligência é conceituada nos mais diversos dispositivos.
Na Lei 9.883 de 7 de dezembro de 1999, que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência e cria a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, contrainteligência é referida como a atividade que objetiva neutralizar a ação adversa.
Para a Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública (DNISP) a contrainteligência “é o ramo da atividade de ISP que se destina a proteger a atividade de inteligência e a instituição a que pertence, mediante a produção de conhecimento e implementação de ações voltadas a salvaguarda de dados e conhecimentos sigilosos, além da identificação e neutralização das ações adversas de qualquer natureza”.
O Decreto n.° 8.793 de 29 de junho de 2016, que fixa a Política Nacional de Inteligência, também trata da contrainteligência como“a atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a Inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado”.
Além disso, há os mais variados conceitos expostos em legislações, manuais e doutrinas que tratam sobre a matéria, todos mencionando a necessidade de prevenção e proteção a determinados bens, tangíveis e intangíveis. Essa proteção, operacionalizada através de medidas de contrainteligência, como bem refere Joanisval Brito Gonçalves:
“Não são apenas os serviços secretos que manipulam dados classificados e lidam com assuntos sigilosos, as medidas de contrainteligência são aplicáveis a quaisquer órgãos governamentais e a entidades e empresas privadas”.
A segurança orgânica (SEGOR) é um dos ramos da contrainteligência e caracteriza-se como o conjunto de medidas integradas e planejadas que visam a proteger ativos institucionais.
É sabido que a Polícia Judiciária produz informações de natureza estratégica no bojo do Inquérito Policial, que possui a sigilosidade como característica essencial ao sucesso das investigações.
Whashington Platt, diz que “Informação Estratégica é o conhecimento referente às possibilidades, vulnerabilidades e linhas de ação prováveis das nações estrangeiras”. Trazendo este conceito para a atividade de polícia judiciaria, pode-se dizer que no bojo do procedimento administrativo Inquérito Policial são também verificadas possibilidades na colheita de provas que buscarão autoria e materialidade, sendo necessária a identificação de vulnerabilidades nos próximos passos traçados através de linhas de ação próprias da investigação, merecendo, portanto, o cuidado da contrainteligência.
Sabemos que a atividade de inteligência não se confunde com a atividade policial, embora ambas se complementem e tenham pontos de convergência no universo da inteligência de segurança pública.
Em razão da natureza de sigilo do Inquérito Policial, embora não absoluto, e da importância do todo carreado aos autos, há a necessidade de proteger os locais em que são produzidos os documentos constantes da peça investigativa, os documentos que contêm provas do crime eventualmente ocorrido e as pessoas que buscam a verdade dos fatos, ou seja, os policiais civis, e é neste aspecto que precisamos lembrar da contrainteligência e criar a mentalidade de segurança na esfera da atividade policial.
Termos clareza sobre a forma que podemos utilizar os ensinamentos da contrainteligência é fundamental para proteção dos ativos de qualquer órgão de polícia judiciária, minimizando vulnerabilidades e impedindo ameaças.
O principio da compartimentação e do sigilo, comuns na atividade de inteligência, merecem destaque e podem servir como incentivadores da mentalidade de contrainteligência na labuta da atividade de Polícia Judiciária.
O principio da compartimentação que “direciona a atividade com propósito de permitir acesso somente para os que tenham a necessidade de conhecer”deve servir como base para as investigações policiais. A compartimentação de conhecimentos a respeito de métodos de investigação, operações policiais a serem desencadeadas, alvos, organizações criminosas, deve ser explicitado apenas para quem deva saber sobre o fato, excluindo-se àqueles que não tem a necessidade de conhecer sobre o assunto.
O sigilo, que já é uma característica presente no Inquérito Policial, como principio de inteligência de segurança pública, visa proteger o órgão, a atividade, seus integrantes e suas ações.
Num país em que há o encrudescimento de organizações criminosas que vêm especializando-se em inteligência, as policias judiciárias devem se utilizar de meios aptos à proteção da sua atividade, imagem e pessoal. É de conhecimento público o incremento de ameaças por parte de OrCrims à policiais civis e militares em todo o país. Proteger esses ativos institucionais e ter a mentalidade de segurança presente é obrigação de todo e qualquer órgão que atue no combate ao crime.
A realidade precária de diversas Polícias Civis no país é matéria de conhecimento público.
Aos documentos estrategicamente sensíveis que são elaborados, manuseados e juntados aos Inquéritos Policiais, seja fisicamente ou eletronicamente, não é dado o tratamento adequado, sejam eles representações por mandado de busca, prisão preventiva, prisão temporária, quebras de sigilo fiscal e telefônico, etc. Essa situação pode evoluir, em determinados casos, para o comprometimento e vazamento do que foi produzido, inviabilizando prisões, operações e busca de provas necessárias à elucidação do fato.
O cuidado com relação aos documentos precisa ser efetivo não só na elaboração mas, inclusive, no descarte.
Da mesma forma, o zelo com áreas e instalações de órgãos policiais, não deve ser esquecido. Como já sabiamente dizia Sun Tzu “a arte da guerra nos ensina a não confiar na possibilidade do inimigo não atacar, mas na certeza de estarmos preparados para repelir com êxito o ataque”.
Enquanto polícia judiciária, num país em que o crescimento e poderio de faccões criminosas é evidente, estamos preparados para repelir ataques às nossas Instituições, para as quais juramos servir e proteger?
As comunicações de informações estrategicamente sigilosas sobre operações policiais a serem desencadeadas devem ser tema de extremo cuidado pelas polícias judiciárias.
Sabemos o quão demorada é uma investigação policial. Por vezes leva-se meses ou anos a fio até que se busquem provas suficientemente idôneas para uma possível condenação. O potencial da Polícia Judiciária em investigar tem se aperfeiçoado ano a ano estando a nível de excelência em diversos cantos do país. Desta forma, não podemos permitir que uma comunicação sobre briefing, desencadeamento de operação, próximos passos da investigação e, principalmente, modo de investigar, sejam comunicados em locais inadequados, para pessoas não autorizadas, que não possuem a imprescindível necessidade de conhecer sobre o conteúdo do que se fala, escreve, transmite, divulga.
Além disso, a segurança cibernética ganhou palco pós pandemia da covid-19. Diversas instituições foram alvo de ataques diretos através de backdoors e vírus ou ataques indiretos por engenharia social, phishing, falhas nos recursos humanos, etc.
Pensando na segurança dos recursos humanos, o cuidado com o principal ativo da instituição, o policial civil, merece destaque. Além dos procedimentos na seleção desse recurso, que passa por um pregressamento inicial, que é acompanhado em todo o periodo do estágio probatório e posteriormente em avaliações de desempenho, servidor que, inclusive, deve ser acompanhado no desligamento de algum órgão de inteligência, ainda é necessária a orientação e assessoramento no que se refere à segurança pessoal dele e de sua familia.
Há a necessidade de orientações aos policiais civis sobre medidas de segurança em sua residência, local de trabalho, uso de redes sociais, deslocamentos e, como não poderia deixar de ser, sobre sua saúde mentale prevenção ao suicídio, questão que merece conscientização coletiva.
Importante referir que, embora o ideal seja que todos os servidores tenham presente no seu dia a dia a educação de segurança, a mentalidade individual pode servir como um embrião na proteção dos ativos institucionais. Para tanto, relembrar aos servidores individualmente sobre os ensinamentos da contrainteligência de forma continua, auxilia na formação da educação de segurança e conscientiza o detentor de conhecimentos sigilosos e estretégicos, transformando-o em um importante instrumento de proteção.
A inteligência de segurança pública deve se aproximar da investigação criminal não apenas no assessoramento com a finalidade de chegar-se à autoria e materialidade delitiva. A contrainteligência e, por consequência, a mentalidade de segurança deve permear as investigações e as condutas de policiais que atuam no combate ao crime.
Os documentos de inteligência, assim como as medidas pendentes de conclusão no âmbito do Inquérito Policial, cuja característica é o sigilo, merecem o amparo da contrainteligência. Ainda, o cuidado com áreas e instalações, pessoal, comunicações, operações deve estar presente nos órgãos que realizam a investigação criminal.
Embora seja recente no Brasil, a inteligência de segurança pública precisa evoluir na sua aplicabilidade para além das agências de inteligência no organograma das Polícias Judiciárias.
Não há caminho fértil para se negar a necessidade de evoluirmos nos ensinamentos da contrainteligência num viés tão importante como a segurança orgânica.
Além disso, a valorização da inteligência como um todo precisa perpassar os discursos políticos, ideológicos e acadêmicos para progredir rumo à valorização prática e efetiva. A atenção a essa necessidade teria diversos fundamentos sólidos, mas a notícia de que facçoes criminosas tem utilizado dos fundamentos da inteligência e contrainteligência nos seus núcleos, por si só, demonstra a necessidade de pensarmos e avançarmos no tema.
Por Simone Viana Chaves Moreira, Delegada de Polícia Civil RS
BRASIL. Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999.
BRASIL. Decreto nº 8793, de 29 de junho de 2016.
Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública.DNISP. 2015.
FONTES, Eduardo. HOFFMANN Henrique. Temas avançados de Polícia Judiciária. 2018.
GONÇALVES, Joanisval Brito. Atividade de Inteligência e Legislação Correlata. Niterói, RJ, 2018.
PLATT, Whashington. A produção de informações estratégicas. 1967.
TZU, Sun. Tradução de André Bueno. A arte da guerra. 2017.
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