O estado da mente diante da verdade, segundo as doutrinas de inteligência, é a disposição mental que permite lidar com fatos incertos, contraditórios e politicamente sensíveis sem sucumbir a vieses, pressões ou narrativas convenientes.
É menos sobre “acreditar ou não” e mais sobre como pensamos a verdade, como avaliamos evidências e como decidimos agir a partir delas.
Neste artigo, vamos explorar o conceito do estado da mente diante da verdade em um mundo de desinformação, vieses e crise de confiança.
Vivemos um contexto em que a disputa central já não é apenas por poder político ou econômico, mas por controle de narrativas e de percepções sobre o que é verdadeiro. Esse ambiente é particularmente crítico no Brasil, onde pesquisas recentes mostram:
Em uma pesquisa divulgada pela Agência Brasil em 2024, 26% dos brasileiros declararam já ter acreditado em fake news, embora 62% afirmem confiar na própria capacidade de distinguir notícias verdadeiras de falsas.
Em levantamento da Quaest sobre o sistema de pagamentos Pix, 87% dos brasileiros foram expostos a desinformação sobre supostas cobranças, e cerca de 67% acreditaram na narrativa falsa de que o governo criaria uma taxa sobre o Pix. Mesmo após a correção oficial, 31% dos expostos não chegaram a tomar conhecimento do desmentido.
Quando quase todos somos expostos a desinformação e uma parcela significativa permanece convencida mesmo após correções, fica claro que o problema não é apenas informacional; é cognitivo. Ele diz respeito ao estado da mente diante da verdade, um tema tratado há décadas pelas doutrinas de inteligência, antes mesmo do termo “fake news” se popularizar.
Quando falamos em o estado da mente diante da verdade, no universo da inteligência, não tratamos de uma verdade metafísica ou ideológica, mas de uma relação disciplinada entre mente, evidências e realidade. As doutrinas de inteligência, em especial a doutrina brasileira, trabalham com a verdade de forma operacional e metodológica, ligada à produção de conhecimento útil ao processo decisório.
Tanto na tradição anglo-saxã de inteligência quanto na doutrina brasileira, a verdade é tratada como representação da realidade com graus de confiança, e não como certeza absoluta.
A Doutrina da Atividade de Inteligência da ABIN (2023) define o conhecimento de inteligência como uma representação de aspectos da realidade, contextualizada e assumida como verdadeira a partir de procedimentos metódicos, produzida para assessorar o processo decisório nacional. Esse conhecimento, como produto, deve ser verdadeiro, oportuno e útil, isto é, representar de forma real ou provável a realidade, em tempo hábil e em formato adequado ao decisor.
Em outras palavras, na doutrina brasileira:
Isso aproxima a verdade, na inteligência, de um conceito operacional e probabilístico, e não de uma crença dogmática.
Se a verdade é trabalhada como representação justificada da realidade, o centro de gravidade da atividade de inteligência passa a ser a mente do analista.
A doutrina contemporânea, internacional e brasileira, reconhece que:
Daí decorre que o estado da mente diante da verdade, para o profissional de inteligência, não é um estado emotivo, mas um modo disciplinado de pensar, orientado por método, princípios e responsabilidade pública.
A doutrina brasileira de inteligência vai além da discussão abstrata e define explicitamente os “estados da mente” em relação à verdade, especialmente no contexto da Inteligência de Segurança Pública, cuja doutrina nacional (DNISP) serviu de base para normas estaduais e trabalhos doutrinários recentes.
Em síntese, esses documentos descrevem a verdade, no contexto da atividade de inteligência, como algo que deve ser:
A partir dessa concepção, a doutrina classifica quatro estados da mente diante da verdade:
1. Certeza
Estado em que a mente adere integralmente à imagem formada sobre um fato ou situação, sem receio de estar equivocada.
Em termos operacionais, corresponde àquele cenário em que o analista, após avaliar as evidências, considera a hipótese altamente confiável.
2. Opinião
Estado em que a mente se inclina a aceitar uma imagem ou hipótese, mas admite explicitamente a possibilidade de erro.
A doutrina associa esse estado à ideia de probabilidade, que deve ser expressa de forma clara (por exemplo, “provável”, “possível”, “pouco provável”).
3. Dúvida
Estado em que a mente se encontra em equilíbrio metodológico entre razões para aceitar e razões para rejeitar uma hipótese.
A dúvida, aqui, não é fraqueza cognitiva, mas uma posição legítima e prudente, quando as evidências são insuficientes ou contraditórias.
4. Ignorância
Estado em que a mente não dispõe de qualquer imagem minimamente fundamentada sobre a realidade considerada.
É o reconhecimento — metodologicamente honesto — de que não há dados suficientes para formular um juízo relevante.
Esses quatro estados não são apenas categorias teóricas: eles estruturam a própria forma como a doutrina brasileira organiza os tipos de conhecimento de inteligência (informe, informação, apreciação, estimativa), vinculando cada tipo a diferentes combinações de raciocínio e grau de convicção.
Podemos sintetizar, a partir das doutrinas de inteligência, três pilares que definem um estado mental saudável diante da verdade:
A doutrina enfatiza que nenhuma análise é definitiva. Documentos de forças armadas e agências de inteligência insistem na necessidade de reconhecer a incerteza e de evitar a ilusão de certeza, o que inclui:
Humildade epistemológica não é relativismo; é disciplina intelectual em reconhecer o que sabemos, o que não sabemos e o que apenas supomos.
Manuais doutrinários e a literatura de inteligência enfatizam técnicas estruturadas, como:
Essa disciplina desloca a mente do estado “eu acho” para o estado “os dados disponíveis sustentam, com tal grau de confiança, esta hipótese”.
A forma como interpretamos a verdade tem consequências concretas: pode legitimar ações coercitivas, influenciar eleições, enfraquecer ou fortalecer instituições. Estudos recentes mostram como narrativas falsas sobre o Poder Judiciário ameaçam a credibilidade de cortes superiores no Brasil, especialmente o STF e o TSE, em um contexto de debates polarizados sobre legitimidade institucional.
Para a doutrina de inteligência, o estado da mente diante da verdade inclui um componente ético: não usar a ambiguidade dos fatos para instrumentalizar a informação, nem para reforçar preconceitos ou agendas ocultas.
A literatura de inteligência e psicologia cognitiva é clara: nossa mente não é neutra. Ela é atravessada por vieses previsíveis que distorcem a percepção da verdade.
Alguns dos principais:
Doutrinas militares e de inteligência recomendam trabalho em equipe diverso precisamente porque indivíduos isolados têm dificuldade de abandonar seus próprios vieses. Manuais como o ATP 2-33.4 (Exército dos EUA) e publicações do Corpo de Fuzileiros Navais ressaltam a importância de reconhecer vieses culturais, organizacionais e pessoais no processo analítico.
Pesquisas recentes ajudam a ilustrar a tensão entre verdade, crença e confiança institucional no Brasil:
Esses dados sugerem que o estado da mente diante da verdade, no contexto brasileiro, é fortemente impactado por:
No plano global, estudiosos vêm medindo o impacto das checagens de fatos na correção da desinformação:
Em resumo: é possível corrigir crenças equivocadas, mas isso exige mais do que despejar dados; requer alterar o próprio estado mental com o qual indivíduos e instituições se aproximam da verdade.
A experiência acumulada em inteligência estratégica oferece um conjunto de boas práticas que podemos traduzir para o debate público, para a gestão e para a educação:
Analistas são treinados a ver suas hipóteses como provisórias. No ambiente social, porém, muitas crenças se tornam parte da identidade (“meu grupo acredita nisso”). Quanto mais identitário, mais difícil revisar.
Uma postura inspirada nas doutrinas de inteligência implicaria:
O modelo NATO/Admiralty Code nos lembra que uma fonte confiável pode, ocasionalmente, fornecer informação ruim, e vice-versa.
Na prática:
Doutrinas contemporâneas vêm insistindo em registrar a cadeia lógica que leva de dados brutos a estimativas e recomendações, justamente para permitir revisão e auditoria de vieses.
Isso pode ser adaptado para organizações civis e estatais:
A lógica de red teams e de análise de hipóteses concorrentes pode ser aplicada a conselhos, comissões e editorias:
A forma como a sociedade brasileira se relaciona com a verdade tem impacto direto sobre:
Do ponto de vista de inteligência e segurança, isso significa que o estado da mente coletiva diante da verdade é, hoje, um vetor de risco:
Ao mesmo tempo, esse quadro abre espaço para políticas públicas de educação midiática, transparência institucional e comunicação baseada em evidências, que ajudem a realinhar percepção e realidade.
Do ponto de vista prático, podemos traduzir os ensinamentos das doutrinas de inteligência em um conjunto de rotinas cognitivas aplicáveis por profissionais, gestores e cidadãos:
Quando falamos em o estado da mente diante da verdade, não estamos discutindo apenas filosofia abstrata, mas um componente operacional da segurança, da governança e da própria democracia. As doutrinas de inteligência nos ensinam que:
Para um instituto voltado a segurança, inteligência e gestão, explorar e difundir essa visão é parte essencial de uma estratégia mais ampla de resiliência cognitiva. Em última instância, proteger a sociedade também é proteger o estado da mente diante da verdade.
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