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Nova Doutrina da Atividade de Inteligência: Evolução e Análise

  • 22 janeiro, 2024

1. Introdução

Em novembro de 2023 foi publicada, pela Agência Brasileira de Inteligência – ABIN – a nova Doutrina da Atividade de Inteligência. A Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência é um conjunto de princípios, normas e procedimentos que regem as operações e a conduta das agências de inteligência no Brasil. Tal documento serve como uma bússola para as Atividades de Inteligência, garantindo que elas se alinhem com os interesses nacionais e os valores democráticos. A Doutrina Nacional de Inteligência também estabelece os limites legais e éticos dentro dos quais essas agências devem operar.

A versão anterior da Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência havia sido publicada em 2016 pela ABIN. Diversos pontos no antigo texto merecem ser relembrados para uma análise das inovações que a nova versão apresenta.

Um dos aspectos fundamentais trazidos na versão de 2016 da Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência é o compromisso com a legalidade e a proteção dos direitos humanos. Segundo o documento, as agências de Inteligência são obrigadas a operar dentro dos limites da lei, respeitando os direitos e liberdades individuais. Isso implica em um equilíbrio delicado entre a necessidade de segurança nacional e a preservação das liberdades civis. A supervisão e a prestação de contas são componentes essenciais para garantir esse equilíbrio, envolvendo, principalmente, o controle externo da Atividade de Inteligência pelo poder legislativo.

Além disso, a Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência de 2016 enfatizava a importância da cooperação e da partilha de informações entre diferentes agências de Inteligência, tanto a nível nacional quanto internacional. Essa colaboração sempre foi considerada crucial pelos agentes de Inteligência, de forma geral. Para combater ameaças internas, como a disseminação de fake News e desinformação planejada, ou ameaças transnacionais, como o terrorismo e a cibercriminalidade, torna-se pouco eficaz sem o esforço conjunto dos órgãos de Inteligência. A partilha oportuna de informações também ajuda a evitar a duplicação de esforços e a maximizar os recursos disponíveis para as agências de Inteligência. Todos estes pontos já estavam bem elencados na Doutrina de 2016.

No documento de 2016, a Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência já reconhecia a necessidade de se adaptar a um ambiente em constante mudança. Com o avanço da tecnologia e a evolução das ameaças à segurança, as agências de Inteligência devem estar preparadas para enfrentar novos desafios. Isso inclui não apenas a atualização de suas técnicas e ferramentas, mas também a constante revisão e atualização da própria doutrina, garantindo que ela permaneça relevante e eficaz diante das mudanças globais.

Todos os elementos citados permanecem na nova Doutrina da Atividade de Inteligência. Mas nesta versão, construída sob a coordenação da ABIN, mas com a colaboração de diversos órgãos de Inteligência que compõem o Sistema Brasileiro de Inteligência, a evolução da Doutrina apresenta modificações conceituais profundas, com impacto na confecção de documentos e na forma de apresentação dos relatórios de Inteligência. Na verdade, amplia a possibilidade, formalmente, da comunicação de dados e informações ao tomador de decisão. Formas que já eram empregadas, mas ainda não estavam consolidadas de forma doutrinária.

Vamos analisar as principais alterações presentes na nova Doutrina da Atividade de Inteligência de 2023, realizando uma comparação com o documento de 2016. Apontar, de forma crítica, os avanços considerados positivos, e os não tão positivos. De qualquer forma, como as ameaças e oportunidades no mundo contemporâneo mudam constantemente, a evolução da Doutrina da Atividade de Inteligência foi bem vinda e necessária.

2. Interação Entre Órgãos de Inteligência na nova Doutrina da Atividade de Inteligência

A primeira novidade presente na nova versão da Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência é a menção à nova estrutura do Sistema Brasileiro de Inteligência – Sisbin, regulamentada pelo Decreto nº 11.693/2023. Parte relevante da nova estrutura do Sisbin é a possibilidade da entrada formal no sistema de entes federados. Ampliando, assim, a possibilidade formal de compartilhamento de dados e informações de Inteligência. A versão de 2016 da Doutrina já previa o trabalho em conjunto interagências, mas a nova versão amplia e incentiva estas iniciativas.

Na visão da ABIN:

“Este documento não pretende substituir ou subordinar as doutrinas de Inteligência do sistema, dos subsistemas e dos demais organismos de Inteligência do Brasil. Sua publicação objetiva facilitar o diálogo e a sinergia entre os diversos componentes do Sisbin.”

3. Fundamentos da nova Doutrina da Atividade de Inteligência

A nova Doutrina da Atividade de Inteligência apresenta um capítulo nomeado Fundamentos. Neste capítulo é dado relevante destaque à questão dos direitos fundamentais e princípios constitucionais. Não que a versão de 2016 da Doutrina não estivesse sob a égide destes princípios, muito pelo contrário, desde 1999, ano de criação da ABIN e instituição do Sisbin a preocupação com o correto uso da Atividade de Inteligência esteve presente.

Contudo, no documento de 2023, a citação aos dispositivos relativos aos direitos e garantias fundamentais ocupa praticamente todo o capítulo.

Nesta parte, Fundamentos, encontra-se também definição importante da Atividade de Inteligência no país, que influencia diretamente a criação de estruturas similares em diferentes esferas de governo:

“A Atividade de Inteligência no Estado brasileiro é exercida por organizações públicas, de forma constante e metódica, por profissionais especializados, lotados em estruturas próprias de trabalho contínuo, conhecidas como organismos de Inteligência.”

Como definição doutrinária, para aplicação do Estado, de forma geral, este conceito permite extrair diversos fatores práticos quando se deseja criar um setor de Inteligência em algum órgão público.

4. Especialização, Democracia e Organização

Após o capítulo Fundamentos, a nova Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência apresenta três capítulos: Especialização; Democracia e Organização.

Na “Especialização”, o destaque pode ser a diferenciação clara que o texto apresenta quanto a um serviço de Inteligência, e a uma fração de Inteligência. A ABIN, por exemplo, é um Serviço de Inteligência. Sua função principal, sua finalidade, razão de ser, é a execução da Atividade de Inteligência.

Frações de Inteligência, por sua vez, são estruturas de Inteligência dentro de órgãos que possuem outra finalidade institucional. Como exemplo, podemos citar um órgão ambiental. Sua finalidade precípua é a fiscalização, regulamentação e demais questões afetas ao meio ambiente. Mas possuem uma fração de Inteligência para apoiar melhor suas ações. O Ibama é o exemplo perfeito.

No capítulo Democracia, basta citar que na versão da Doutrina Nacional de Inteligência de 2016 não havia um capítulo específico dedicado a esta temática. Na nova versão, o capítulo aborda a questão do respeito à democracia, à constituição e como a Atividade de Inteligência, respeitando todos os instrumentos legais, é papel central no fortalecimento de regimes democráticos.

Na parte do texto “Organização”, a nova Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência apresenta uma importante atualização em relação à versão de 2016. Diferencia, formalmente, a comunidade de Inteligência de um Sistema de Inteligência. Realidades fáticas, mas que sempre foram tratadas de maneira informal que, com o texto no novo documento, tenta apresentar doutrinariamente a diferença entre as duas formas de organização dos entes de Inteligência.

A comunidade de Inteligência de um país são os órgãos e frações de Inteligência e suas interações, meios de comunicação, troca de dados e informações, mesmo que sem formalidades tais como termos de cooperação ou outros dispositivos. É baseado na relação de confiança entre os agentes inseridos em uma realidade fática geograficamente de interesse mútuo. Como exemplo, cita-se a comunidade de Inteligência do estado de Mato Grosso. É formada por órgãos federais, estaduais, municipais, do poder executivo, judiciário, enfim, mesmo não havendo entre algum desses entes algum instrumento institucional formalmente assinado.

Já um Sistema de Inteligência, diferente de uma comunidade de Inteligência, está formalmente criado através de um dispositivo legal, tal como um decreto. Cita-se, claro, o Decreto nº 11.693/2023, que atualizou o Sistema Brasileiro de Inteligência. Neste capítulo da nova Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência, inclusive, é dado bastante destaque ao novo decreto do Sisbin.

Extrai-se, portanto, uma importante conclusão: uma comunidade de Inteligência é maior que um sistema de Inteligência, e baseia-se, principalmente, no estabelecimento da confiança entre os agentes.

5. Ética, Princípios e Valores

Nestes capítulos não há alterações relevantes em relação à versão de 2016 da Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência.

Há, contudo, um maior aprofundamento na parte “Valores”, onde conceitos como: Orientação a Resultados e Transparência Ativa são adicionados. Basicamente, frisa-se que as ações da Atividade de Inteligência devem estar claramente orientadas a apoiar o processo decisório do Estado, e não de um governo.

6. Ramo Inteligência

Neste capítulo, a nova Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência, de 2023, apresenta um novo e importante conceito: Inteligência de Base.

Os tipos de Inteligência, ou informações, clássicos são: estratégica, tática e operacional. O novo documento apresenta a Inteligência de Base como sendo os dados e informações levantados no cotidiano do analista de Inteligência sobre determinado tema. Transformam-se no conjunto de fundamentos e referências do analista que possibilitarão sua compreensão e contextualização sobre a área de estudo. É um acompanhamento diário, e o usuário desse conhecimento costuma ser interno.

A nova Doutrina da Atividade de Inteligência cita como exemplos de Inteligência de Base “explicações sobre a política interna de países, estatísticas econômicas e estudos sobre o desenvolvimento histórico de atores de interesse para a sociedade e o Estado.”

O conceito de Inteligência de Base não existe na versão de 2016 da Doutrina da Atividade de Inteligência.

Outros dois conceitos inovadores presentes na nova Doutrina da Atividade de Inteligência são a Inteligência de Alerta e Inteligência Corrente. Ambas, com algumas diferenças, têm o objetivo de manter as autoridades decisórias atualizadas sobre eventos iminentes, ou sobre situações estabelecidas, como um possível ato hostil por outro Estado, ou sobre os desdobramentos de um desastre natural.

6.1 Origem dos Dados e Informações

Na nova Doutrina da Atividade de Inteligência é apresentado os tipos de Inteligência quanto à forma de obtenção dos dados e informações, que poderão se transformar em conhecimentos.

Basicamente, a classificação pela origem do dado apresenta três categorias:

Na versão anterior da Doutrina da Atividade de Inteligência estas categorias não eram abordadas e, na versão atual, são pormenorizadas. Segue um quadro resumo com os acrônimos derivados dos termos em inglês:

Categoria Acrônimo Descrição
Inteligência de Fontes Humanas      HUMINT Obtida através de pessoas.
Inteligência de Fontes Abertas OSINT Obtida através da coleta metódica de dados disponíveis.
Inteligência de Fontes Técnicas TECHINT

Obtida através de meios técnicos:

  • Signals Intelligence – Sigint
  • Imagery Intelligence – Imint
  • Geospatial Intelligence – Geoint
  • Measurement Intelligence – Masint

 

6.2 Ciclo de Inteligência

A nova Doutrina da Atividade de Inteligência apresenta uma modificação em relação à versão de 2016 no Ciclo de Inteligência.

Vamos analisar os dois ciclos:

 

 

Os dois Ciclos de Inteligência possuem cinco fases. Na realidade, lendo o texto da nova Doutrina da Atividade de Inteligência, que afirma que as três primeiras fases são de responsabilidade do órgão de Inteligência, enquanto às demais seriam de outras esferas, não há uma relevante alteração conceitual em relação ao Ciclo de Inteligência da doutrina de 2016.

Os termos “decidir” e “agir” da nova versão podem ser entendidos como equivalentes ao termo “política” da versão de 2016. A atualização, nesse caso, parece-nos mais uma questão de modernização de termos.

 

7. Ramo Contrainteligência

Na Doutrina da Atividade de Inteligência de 2016, a Contrainteligência era dividida em dois segmentos: segurança orgânica e segurança ativa. Há tempos que estes termos evoluíram no dia a dia da Atividade de Inteligência para Contrainteligência Preventiva e Contrainteligência Ativa. E agora, na nova Doutrina da Atividade de Inteligência eles foram consagrados no texto doutrinário.

Assim, apresentamos um quadro resumo dos dois segmentos e subdivisões presentes na nova Doutrina:

Contrainteligência Preventiva Contrainteligência Ativa
  • Proteção do Conhecimento
  • Proteção de Infraestruturas Críticas
  • Prevenção à Ações de Interferência
  • Contraespionagem
  • Contrainterferência
  • Contrainsurgência
  • Contraterrorismo

 

Destaca-se o conceito de Prevenção à Ações de Interferência no segmento Contrainteligência Preventiva, e os conceitos de Contrainsurgência e Contrainterferência no segmento de Contrainteligência Ativa. Conceitos novos que merecem estudo mais aprofundado para sua eficiente execução na obtenção de conhecimentos.

Por fim, no capítulo “Ramo Contrainteligência” da nova Doutrina da Atividade de Inteligência é abordado especificamente a relação entre contrainteligência e segurança. De forma muito apropriada os autores da nova versão da Doutrina apresentam a estreita sinergia que há entre as duas áreas e que não é possível exercer a Contrainteligência e a segurança de forma eficaz, se tratadas de forma isolada.

E é, infelizmente, muito comum na maioria dos órgãos que possuem frações de Inteligência tratarem as duas de formas isoladas. Ou mesmo confundidas como setores similares.

A nova Doutrina da Atividade de Inteligência frisa a importância da interlocução entre a área de segurança interna da instituição, com o setor de Contrainteligência, além de citar a importantíssima necessidade de se criar no órgão uma cultura de proteção.

8. Elementos de Análise da nova Doutrina da Atividade de Inteligência

Na nova Doutrina da Atividade de Inteligência é apresentado um capítulo chamado Elementos de Análise.

No fundo, este capítulo compila todos os conceitos que na versão de 2016 da Doutrina está contido nos capítulos “Fundamentos Teóricos para a Produção de Conhecimento” e “Elementos Epistemológicos”. Há um rearranjo textual, facilitando a compreensão do conteúdo, na opinião destes autores que aqui escrevem.

Porém, há mudanças em algumas terminologias que devem ser citadas. Nos estados da mente perante a verdade, na versão da Doutrina de 2016, são apresentados os estados: ignorância, dúvida, opinião e certeza. Segunda a Doutrina, um profissional de Inteligência só pode construir um conhecimento de Inteligência quando as frações de conhecimentos estiverem nos estados de opinião e certeza. 

Na nova Doutrina da Atividade de Inteligência, os estados da mente perante a verdade passaram a ser: ignorância; possibilidade; probabilidade e certeza. Sendo os estados válidos para a Inteligência os estados de probabilidade e certeza.

Essa mudança na terminologia nos parece adequada. O estado de opinião, para os não iniciados ou os iniciantes nos estudos da Atividade de Inteligência, era frequentemente confundido com a opinião do analista. O que, com certeza, não é o caso. Trata-se de um estado em que o analista possui uma quase certeza do fato ou situação. Expressava uma probabilidade alta daquilo ser a verdade.

Então, a mudança no nome do estado de opinião, para estado de probabilidade, deve diminuir esta confusão e facilitar a compreensão de quem inicia a Atividade de Inteligência.

O capítulo Elementos de Análise aprofunda bem estes conceitos e merece uma leitura detida. Há partes específicas para Dado, Informação, Conhecimento de Inteligência e sobre o Ciclo de Análise. Assim como, um maior detalhamento da Metodologia de Produção de Conhecimento, mais estruturada que na versão da Doutrina de 2016.

9. Considerações finais sobra a nova Doutrina da Atividade de Inteligência

A nova Doutrina da Atividade de Inteligência, recém-publicada, em novembro de 2023, é extensa e abrange todos os tópicos da versão anterior, e avança em conceitos mais atuais. 

Como documento doutrinário que almeja ser, consideramos uma evolução positiva, que orientará os demais dispositivos correlatos à Atividade de Inteligência.

Um ponto de destaque, talvez o principal deles em nossa opinião, é a consolidação de formas de obter Inteligência, que já eram realizadas na prática, como a citada Inteligência Corrente e de Base. Mas agora se encontram formalizadas doutrinariamente e que poderão ser difundidas na prática de forma mais eficiente.

Este texto tem como objetivo apenas fazer uma análise das mudanças presentes na nova Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência em relação à versão de 2016. Mas sem dúvidas que é imperativo que a nova Doutrina seja lida com atenção por todos os agentes de Inteligência e interessados da área. Todos os conteúdos aqui citados possuem grande aprofundamento no texto doutrinário.

Para acessar o novo documento na íntegra, clique aqui.

Uma excelente leitura.

 

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